É possível matar no metaverso? O que diz a Justiça?
Pode até não ser possível matar, mas diversos crimes podem ser cometidos no metaverso e a justiça precisará lidar com este fato no Brasil
Com tantas questões sendo levantadas sobre a segurança e possível mau uso da tecnologia, a dúvida parece pertinente. Afinal, o que a Justiça dirá se morrer alguém no metaverso? Especialistas em realidade virtual estão recebendo muitas perguntas sobre o assunto e o Bit Magazine foi atrás de respostas.
Metaverso é tão real que podemos matar alguém?
Pode até parecer um pouco curioso pensar isso. Na verdade, não se pode matar de fato alguém no metaverso – pelo menos, até onde a tecnologia está agora — sem conexão neurológica com a rede. A única forma de matar alguém seria através disso (espero que não criem nada assim…).
O fato é: apesar de não tirar a vida de ninguém, crimes podem ser cometidos e destruírem uma vida com difamação, indução ao suicídio, roubo de todos os bens, etc. Isso já causa preocupações em diversos especialistas – tanto na tecnologia envolvida no metaverso, como especialistas em direito digital.
Relação entre Justiça e os possíveis crimes do metaverso no Brasil
Como não vamos apenas replicar a análise internacional sobre essas questões – afinal, as leis brasileiras são distintas das encontradas em outros países -, o Bit Magazine procurou entrevistar alguns especialistas no assunto, entre incentivadores tecnológicos e advogados do direito digital.
Crimes conhecidos no mundo real
O primeiro questionamento que me veio à mente: como a Justiça irá lidar com crimes já conhecidos e praticados no mundo real, ao serem praticados no metaverso ou com o auxílio dele?
Essa é uma pergunta da relação básica que a Justiça brasileira terá que lidar desde o primeiro momento em que o metaverso se tornar, de fato, uma realidade.
Arthur Igreja, especialista em Tecnologia, Inovação e Tendências, entende que a melhor maneira de adaptação do Judiciário é através da busca pelo conhecimento do cenário:
“Acredito que a Justiça terá que se adaptar. A preocupação é que as instituições e organismos sempre estão um passo atrás da evolução tecnológica. O primeiro ponto é saber se os magistrados e todos os envolvidos têm algum grau de conhecimento do que está acontecendo.”
Para Mathias Naganuma, professor de Direito da Universidade Impacta, em um primeiro momento, para essa espécie de crime, não deverá existir nenhuma mudança relativa aos processos do Judiciário:
“A ação judicial nos casos criminais expostos acima – como extorsão, roubo e falsidade ideológica -, seguirão de forma semelhante aos preceitos estabelecidos em nosso ordenamento jurídico. Todavia, provavelmente teremos legislação específica acerca do tema para complementar os tipos legais já existentes com eventuais agravantes ou atenuantes a serem aplicados ao caso em espécie.”
Na opinião do advogado mestre em Direito e especialista na área digital, Pedro Guimarães, teremos uma ampliação daquilo que já vem sendo produzido em relação às interações digitais e suas garantias, por exemplo, a LGPD:
“O desafio da atuação da Justiça dentro do metaverso será uma extensão dos desafios enfrentados pela internet tradicional, isto é, será cada dia mais necessário aos operadores da Justiça uma capacidade de reflexão para além da frieza dos livros técnicos e dos modelos jurídicos tradicionais. O roubo é um crime tão antigo quanto a humanidade, mas que ganha novos contornos num mundo digital.”
Quando questionei os entrevistados sobre a criação de novas tipificações criminais a partir da interação no metaverso, os três foram unânimes em concordar com a possibilidade (até ter certeza de que irá acontecer).
As novas tipificações podem ser completamente novas ou baseadas em recursos jurídicos já existentes, com “penas que irão diferir — maiores ou menores —, pois poderão ocorrer calúnia, difamação, falsidade ideológica” com os crimes especificamente digitais.
Sequestraram o meu avatar. E agora?
Expandi um pouco mais o raciocínio para a possível criação de identidade própria dos avatares (representações pessoais no mundo virtual), como personalidades de direito.
Se de fato isso ocorresse, o que aconteceria se “matassem” meu avatar (exclusão total e perda de dados), ou “sequestrassem” ele? Como a Justiça iria proceder? Foi uma “provocação” interessante, já que estamos entrando em um mundo completamente novo e desconhecido em todos os sentidos.
Aparentemente, segundo Pedro Guimarães, a realidade não será tão próxima ao universo Cyberpunk como imaginei:
“Em sentido bastante amplo, mas é impossível projetar personalidade jurídica autônoma a avatares, por estes não serem titulares de direito. Uma pessoa, por exemplo, pode possuir diversos avatares. Sua proteção se dá na dimensão que constituem “propriedade” de uma pessoa física ou empresa e protegidos enquanto esta categoria apenas.”
É possível um “banimento permanente” de qualquer estrutura do metaverso?
Ao fazer esse questionamento, tentei buscar uma conexão com algo como “prisão perpétua”, pena inexistente no Brasil, mas que significa um isolamento total e permanente do ambiente onde se praticou o crime. Para a riqueza do debate, finalmente, tivemos um pouco de discordância nos pontos de vista dos entrevistados.
Para Arthur Igreja, o metaverso não será visto como um único local apenas, mas sim um conjunto de regiões com regras próprias, o que me lembram os Estados e nações:
“Quando falamos em prisão perpétua trata-se de uma pena capital. Banimento é algo que já existe nas redes sociais. Como exemplos temos o que ocorreu com o Trump, que passou até por um conselho decisório, que avaliou por quanto tempo e quando seria revisionada a possibilidade dele voltar às redes sociais ou não.”
O advogado Pedro Guimarães concorda com Arthur até certo ponto sobre a ideia, pois vê o metaverso como sendo uma coisa só, mas de caráter privado:
“A possibilidade existe sim, em razão do metaverso ser uma dimensão particular, não pública. Trata-se de um espaço virtual privado, onde a ‘Constituição’ são os termos de uso do seu administrador.”
Agora, na contramão dos dois pontos de vista, está o professor Nagamuna. Para ele, o comportamento do judiciário se aproximaria do que temos em vigor no Brasil:
“Atualmente, constitucionalmente falando, não seria possível um ‘banimento eterno’ dos criminosos condenados por delitos praticados através do metaverso, visto que uma vez cumprida eventual pena por condenação do crime, o usuário estaria apto a retornar ao convívio social, paralelamente ao previsto hoje nas relações offline.”
O professor também faz um lembrete importante sobre a autonomia dos países em conflito direto com outra ferramenta já muito utilizada na internet de hoje, o VPN:
“Entretanto, na prática, é preciso lembrar que o nosso Poder Judiciário só tem competência no território nacional, ou seja, caso o usuário do metaverso utilize, por exemplo, uma VPN (Virtual Private Network) e faça seu login utilizando o IP de outro país, sem qualquer categoria de acordo internacional com o Brasil, seria impossível criminalizar o indivíduo com base na legislação pátria, visto que ele se encontra fisicamente aqui, mas virtualmente em outro país, isto é, o local, a jurisdição do ato delituoso seria outro.”
O mais importante é que o debate não cesse (muito pelo contrário). Que se amplie para que, de uma forma saudável, a Justiça e o metaverso andem juntos – para se preparar para o novo cenário, garantindo o direito, segurança e bem-estar dos usuários.
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Leandro Kovacs é jornalista e radialista. Trabalhou com edição audiovisual e foi gestor de programação em emissoras como TV Brasil e RPC, afiliada da Rede Globo no Paraná. Atuou como redator no Tecnoblog entre 2020 e 2022, escrevendo artigos explicativos sobre softwares, cibersegurança e jogos. Desde então, atua como editor no Grupo Gridmidia.